A abertura da Consulta Pública nº 026 traz uma reflexão sobre a possibilidade do fortalecimento de instrumentos de solução de conflitos dentro do Setor Elétrico
A Consulta Pública nº 026/2020 aberta pela ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica) teve como objeto obter subsídios para a recriação da Comissão de Resolução de Conflitos das Agências Reguladoras dos Setores de Energia Elétrica, Telecomunicações e Petróleo. A necessidade de recriação dessa importante Comissão das três agências surgiu após a edição do Decreto nº 9.759/2019 pelo Poder Executivo que, ao mesmo tempo que determinou a extinção em massa dos incontáveis – e muito supérfluos – órgãos colegiados da administração pública federal direta, autárquica e fundacional , incluindo referida Comissão, estabeleceu as regras para a criação de novos colegiados cuja função se justifique.
Essa Comissão que está sendo recriada pelas Agências tinha como objetivo solucionar conflitos entre agentes dos setores de energia elétrica, telecomunicações e petróleo relacionados à aplicação e interpretação do Regulamento Conjunto para compartilhamento de infraestruturas e, durante sua existência, de 2014 a 2019, recebeu 246 pedidos de resolução de conflitos, emitiu 125 decisões de primeira instância e concluiu 49 processos. Sua recriação tem fundamento na Lei das Agências Reguladoras de 2019 .
Em outro contexto completamente distinto, a Convenção de Comercialização da CCEE, por determinação do Decreto nº 5.177/2004 (Art. 3º, IV), dispõe de regramento que prevê que os agentes associados à CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica) devem obrigatoriamente aderir à Convenção Arbitral (Câmara FGV de Conciliação e Arbitragem). Até o final de 2019, a Câmara de eleição da CCEE analisou 17 processos de mediação e 79 de arbitragem.
Em relação às regras da CCEE, é interessante anotar que há uma estipulação de cláusula escalonada, em que é obrigada a instituição da mediação de forma prévia ao procedimento arbitral (Art. 59, da Resolução Normativa nº 109/2004).
E também no âmbito do Setor Elétrico, o ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico) possui em seu Estatuto (Art. 44, aprovado pela ReA ANEEL nº 8.652/2020) previsão de que ele e seus associados poderão valer-se da arbitragem prevista na Lei nº 9.307/1996 para solucionar conflitos na área de atuação do ONS, podendo utilizar-se de Câmaras especializadas em questões voltadas ao Setor Elétrico. Não localizamos, no entanto, qualquer estatística, ou até mesmo notícia, sobre a utilização dessa modalidade de solução de conflitos.
Tendo em vista os exemplos acima, a abertura da Consulta Pública nº 026 traz uma reflexão sobre a possibilidade do fortalecimento de instrumentos de solução de conflitos dentro do Setor Elétrico. Se considerarmos que a Lei nº 9.427/1996 já previa que compete à ANEEL dirimir, no âmbito administrativo, divergências entre agentes, bem como entre os agentes e seus consumidores, tendo o Decreto nº 2.335/1997 especificado que a atuação da ANEEL seria exercida para resolver conflitos, prevenir divergências e proferir decisão com força determinativa, e ainda utilizar os casos mediados como subsídios para regulamentação, após 23 anos de vigência desses dispositivos, podemos avaliar como tímidos os números de casos confiados a essa modalidade de solução de conflitos.
Até março de 2020, o Setor Elétrico era composto por 765 geradores, 232 concessionários de transmissão, 57 distribuidoras, 121 consumidores livres, 350 comercializadores , dentre outras modalidades de agentes que interagem entre si e com os órgãos governamentais. E este número não para de crescer, assim como as divergências e conflitos entre eles. São disputas variadas, envolvendo, por exemplo: conexões na distribuição e na transmissão; exigências comerciais excessivas em cláusulas de contratos regulados; dificuldades na implantação, operação e manutenção de instalações de energia elétrica observadas por concessionários; situações excepcionais que justificam a não aplicação de descontos e penalidades, enfim, uma lista infindável de situações de direito patrimonial disponível que poderiam, e porque não dizer, deveriam, ser mediadas ou arbitradas por uma Câmara Especializada do Setor Elétrico.
Atualmente não há uma consolidação de todas as dificuldades, reclamações e disputas que surgem diariamente entre agentes do Setor Elétrico, e, certamente, um levantamento pela quantidade de processos judiciais envolvendo agentes do Setor Elétrico nos daria um número subestimado das contendas. É que muitos das dificuldades acabam sendo absorvidas pelo agente que está em situação de fragilidade de forma a não onerar ainda mais seu empreendimento, o que consequentemente acaba onerando o consumidor final, a quem são repassados estes custos de conflito.
Respeitados os limites que a mediação e arbitragem possuem pela própria natureza, e ainda considerando que para a administração pública há uma restrição dos conflitos que podem ser objeto destas modalidades de solução de conflitos, não é má ideia ampliar a discussão para que seja criada uma Câmara de Mediação e Arbitragem Especializada no Setor Elétrico que, a nosso ver, traria certas vantagens, tais como:
a) Deslocamento de temas específicos e complexos envolvendo agentes e entidades do Setor Elétrico para um ambiente especializado tecnicamente e com amplo conhecimento da história e regulamentação do setor;
b) Garantia de maior estabilidade regulatória a partir de decisões mais técnicas e que possam fundamentar ajustes e aprimoramento na regulação;
c) Ao evitar ou solucionar conflitos de forma mais ágil e precisa, sensação de maior segurança por parte dos investidores, que podem reverter em modicidade tarifária;
d) Apuração de problemas, estatísticas e tendências que permitam subsidiar ajustes na regulação.
Enfim, com base na legislação existente, com algum aprimoramento, é possível gestar um embrião de um ambiente de solução de conflitos especializado no Setor Elétrico que, se bem estruturado, trará inúmeras vantagens para o consumidor, empreendedores, agentes e autoridades. E para encerrar, é bom deixar claro que o objetivo maior desse texto é provocar uma reflexão sobre o assunto, sem contundo propor um determinado modelo ou esgotar todas as discussões que a estruturação de um arcabouço legal para a solução de conflitos por agências reguladoras no âmbito de seus tutelados devem enfrentar.
Caio Cavalcante e Tiago Lobão são sócios fundadores do Escritório Lobão Cosenza, Figueiredo Cavalcante Advogados